18 de junho de 2008

"Estão vendendo a sua cultura"

Esta entrevista de Elton Medeiros concedida ao jornalista João Bosco Rabello foi publicada no suplemento cultural de domingo do Correio Braziliense no 22 de janeiro de 1978 (outras partes da reportagem especial aqui e aqui). Na ocasião, Elton já lamentava os tristes rumos que as Escolas de Samba estavam tomando. Como podemos ver hoje, foi um caminho sem volta: as agremiações de samba tornaram-se um inescrupuloso negócio.
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Domingo, 22 de janeiro de 1978
por João Bosco Rabello

Homem de Escola de Samba, compositor e parceiro de Paulinho da Viola, Élton Medeiros é também profundo conhecedor e estudioso da cultura popular. Neste depoimento, ele faz uma comparação entre o que aconteceu com as gafieiras e o que acontece com as Escolas de Samba: a invasão do elemento estranho que quer impor seus hábitos e as conseqüências disso.

Elton Medeiros: “Estão vendendo sua cultura”

João Bosco Rabello – Elton, como você vê a situação das escolas de hoje, e principalmente a partir das modificações feitas por Fernando Pamplona?

Elton Medeiros – Olha, já em 1948, o Império Serrano introduz modificações na escola de samba. A Aprendizes de Lucas também nesta época introduziu modificações na bateria, a frigideira. Então, você identificava o som da escola pela bateria, pela frigideira e pelo prato, isso em 1948, quer dizer, antes da aparição de Fernando Pamplona. O Pamplona começa a fazer carnaval no Salgueiro mais ou menos em 1959/60. O Salgueiro introduziu modificações, mas visando à participação de elementos da comunidade da escola em que ele saiu, ou a escola para a qual ele trabalhou, que foi a Acadêmicos do Salgueiro. Então, ele teve a preocupação de fazer um carnaval barato. Se não me engano, o primeiro carnaval do Salgueiro com Pamplona foi uma homenagem aos Fuzileiros Navais. Se não foi o primeiro, foi um dos primeiros. Depois, ele veio com temas de escravidão. Esses temas como você pode notar, dão oportunidade aos carnavalescos de fazerem, criar um carnaval barato. As fantasias são tangas, fantasias de escravos, e o que ornamentam essas fantasias são os adereços, que são feitos pelos cenógrafos, hoje em dia chamados carnavalescos. Então você tem de notar influências que a escola de samba sofre em razão de modificações da vida da cidade, entende? Modificações de caráter social, e que refletiram no comportamento do sambista. Eu falei, note bem, sobre modificações feitas no Império Serrano e, essas modificações foram feitas a partir, talvez, de uma necessidade sentida pelos elementos naturais de escola de samba. Foram modificações feitas por esses elementos. As que o Pamplona fez já não foram feitas por elemento natural de uma escola de samba. Já as do Império Serrano, em 1948, foram feitas pelos elementos naturais da escola de samba, daquela comunidade. A Aprendizes de Lucas também. Outras escolas de samba devem ter feito também modificações, mas essas foram as mais marcantes. Dessas eu posso falar porque eu acompanhava os desfiles dessas escolas de samba.

JBR – Fernando Pamplona era um elemento de fora da escola. Quero que você veja as duas posições: a do desenhista Lan com relação a Portela e do Pamplona em relação ao Salgueiro. O Lan é portelense desde 1949, mais ou menos, e nunca fez um traço para a Portela; e dizia: “Não faço figurinos para a Portela porque estaria interferindo num processo que não me diz respeito”. Diante disso, como você vê a atuação de Pamplona?

EM – O que eu quero dizer a você é que a Escola de Samba, por ser comunitária, ele deve ser artesanal. Ela não deve ser uma escola de samba que sirva de estágio de acadêmicos, nem mesmo veículo de promoção pessoal. Então, o artista de TV se utiliza da escola de samba para ser apontado na rua. Dona Beki Klabin, por exemplo, há alguns anos, disse que desfilava porque gostava de ser apontada na rua. Ora, pombas, escola de samba foi criada para proporcionar um divertimento barato, coisa de pessoas marginalizadas na sociedade. Essas pessoas criaram um divertimento barato. A escola de samba sempre foi de pessoas que não tinham dinheiro para ir ao Baile do Municipal, de pessoas que não tinham dinheiro para ir ao Monte Líbano, outro qualquer baile de gala.

JBR – O que era uma escola de samba no início?

EM – Ela vem dos concubins, que eram aqueles grupos de pessoas, concubins..., cordões de velhos, ranchos... Os ranchos é o tal negócio. O rancho vem dos concubins, entendeu, os ranchos passaram por um processo de transformação que as escolas estão passando atualmente, os ranchos atraíram pessoas da classe média, e você pode ver que o Ameno Resedá era um bloco de sociedade, foi um rancho de elite, e depois do aparecimento do Ameno Resedá trouxe realmente uma satisfação visual para muita gente e, ao mesmo tempo, decretou a decadência de todos os outros, porque o que ocorre com as escolas de samba hoje em dia é o que ocorreu com as gafieiras em relação à classe média.

Ela invadiu as gafieiras e, acho que já disse isso, umas cinqüenta vezes. Foram lá. Foram assistir aquele modo característico, todo especial, de se dançar em gafieira, de elemento de gafieira. Bem, mas chegando lá os elementos de classe média ao invés de se submeterem ao regime de gafieira sem interferir no comportamento do dançarino de gafieira, do freqüentador da gafieira, eles começaram a fazer amizade com os donos das gafieiras. Ora, o dono de gafieira é um comerciante como outro qualquer. E incutiram na cabeça deles que se botassem uísque em vez de batidas de limão, de pêssego, etc, leite de onça, se eles substituíssem o sanduíche de salame por outros salgadinhos mais sofisticados, eles ganhariam mais dinheiro porque esses freqüentadores de classe média trariam outros elementos de classe média para fazer despesa. Muitos deles, é verdade, pediram empréstimos e realmente ganharam muito dinheiro. Eles investiram no negócio. E a classe média estava presente recusando o sanduíche de salame e as batatinhas. E aí o que ocorreu? Esta gente, não satisfeita em impor as sua bebidas e as suas comidas dentro daquele ambiente, os seus costumes, passaram a impor também a sua maneira de dançar. Ou se não quiseram impor, pelo menos começaram a dançar da maneira que sabiam dançar ou tentaram imitar os dançarinos de gafieira sem saber. Eles pisavam os pés dos dançarinos de gafieira. Os dançarinos de gafieira faziam aquelas filigranas, aquele bailado, sem prejudicar a dança dos companheiros. Eles não chegaram pisando os pés dos outros e os elementos naturais das gafieiras foram se afastando e chegou um momento em que a classe média se viu sozinha nas gafieiras. Então, aqueles que eram atração nas gafieiras, desapareceram, criaram novos hábitos da classe média. Então, está havendo uma inversão de comportamento. Bom, quando a classe média se viu sozinha nas gafieiras, sem o elemento de atração para ela, ela se afastou também. Então, as gafieiras foram fechando. Então, eu sou contrário à tese do Albino Pinheiro, quando ele diz que as gafieiras fecharam por causa do metrô. Não é verdade, muito antes do metrô elas já tinha desaparecido. Agora, ele como elemento da classe média...

É, meu amigo, não é nada pessoal, é uma questão de ponto de vista, que é antagônico ao dele. Não é verdade, antes do metrô as gafieiras já tinham desaparecido. O Elite ainda está aí suportando o Rio de Janeiro. Mas, a Estudantina que pegava as sobras do Zicartola, já fechou há muito tempo. O Mauá já fechou há muitos e muitos anos. A Pavuna Grande também, e outras mais aí... Aquela gafieira da Rua de Santana, chamada Cheira Vinagre, o Dragão, tudo isso foi fechado por causa da invasão do elemento de classe média que marginalizou dentro do seu próprio reduto, o elemento de gafieira.

Bom, a classe média tomou um divertimento barato. Acabou com o divertimento deles. Mas, ainda tinha a escola de samba como opção. E a classe média foi para as escolas de samba e a mesma coisa está ocorrendo com as escolas de samba. Esse processo inflacionário é o resultado. Com fantasia de custo superior a dez mil cruzeiros, coisa que o sambista salário-mínimo não suporta. Não pode suportar financeiramente. Como ele não podia tomar uísque na gafieira, como ele não pode comer salgadinhos mais caros, acostumado que estava com o sanduíche de pão francês com salame. Com batidas. A mesma coisa está ocorrendo com as escolas de samba. Algumas têm uísque para vender, mas mesmo a bebida normal do sambista está custando um preço absurdo. Uma garrafa de Leite de Onça custa tão caro que você tem a impressão que ali dentro tem ouro. Uma garrafa de cerveja a Cr$ 30,00. Então, as escolas de samba hoje, apesar de serem consideradas, até por decreto, como de utilidade pública, não é de utilidade pública coisa nenhuma. Elas são pequenas empresas. Onde é que está a utilidade pública? São empresas, não são mais de utilidades públicas. Você paga no primeiro passo que você dá dentro do terreiro, verdadeiras casas de comércio. Então, as escolas de samba estão sujeitas a influências, isso, todos nós estamos sujeitos a influências.

JBR – Bom, isso também foi dito pelo Paulinho e pelo Candeia, que ninguém tem ilusão de que as escolas voltem a ser o que eram há muitos anos. Eles acham que apesar dos compromissos com turismo, comprometimento de ordem financeira e tudo mais, a estrutura interna das escolas não deve sofrer alteração. Acontece que as escolas estão se transformando também internamente, na sua essência, lá dentro.

EM – É claro. Eu vou chegar onde você quer. O que ocorreu foi o seguinte.

JBR – Peraí, só pra acabar meu raciocínio. Eu quero dizer que, por exemplo, a Riotur interfere bastante em todo esse processo, a partir do momento em que ela mantém contratos de prestação de serviços com os sambistas, mas ela não vai lá dentro do terreiro da escola, determinando qual samba-enredo que vai representar a agremiação, ou determinar se fulano ou beltrano farão ou não parte da Ala de compositores da escola, certo? Ela não diz, por exemplo, que o samba vencedor deve ser o do Jair Amorim e do Evaldo Gouveia, entende?

EM – Certo, mas eu quero dizer pra você porque existe esse processo de permissividade dentro das escolas. Isso ocorre por causa da inflação existente hoje nas escolas. Então, um grande passista, um grande mestre-sala, um grande diretor de harmonia, descobriram que para comprarem uma fantasia cara, basta que eles trabalhem como garçons ou roleteiros nas escolas. Então, ele se evadiu do terreiro da escola de samba para a roleta, ele se transferiu do terreiro das escolas para servir nas mesas. Deixou de ser sambista para ser roleteiro, para ser garçom, pra ser cozinheiro, porque ele sabe que dentro da escola de samba ele recebe dinheiro sem se aborrecer a troco de nada, vamos dizer assim como uma troca. Uma compensação financeira. É isso exatamente, uma compensação financeira. Então, ele prefere trabalhar de garçom. Quem perde com isso? Um grande mestre-sala deixa de dançar para servir cerveja. Perde-se um grande mestre-sala e ganha-se um mau garçom, perde-se um grande tamborinista e ganha-se um péssimo roleteiro que, às vezes, trata mal o usuário, porque ele está revoltado. Nos seu subconsciente ele sabe que ali não é o seu lugar. Ele pode desconhecer as causas, ter consciência do porque de ele estar ali, mas ele, no fundo sabe que ali não é o seu lugar, ele fica revoltado.

Então, é por isso que digo que escola de samba hoje, a situação dela é muito profunda. Escola de samba hoje deve ser e pode ser objeto de estudo sociológico, político, econômico, etc. Psicológico também, porque o comportamento de um “roleteiro” desses é digno de ser estudado por um psicológico e por um sociólogo também. A inflação, o alto custo da fazenda, da fantasia, aliás, do instrumental, da bebida, porque antigamente a escola de samba foi criada para oferecer um divertimento barato. A partir do momento que esse divertimento está caro, esse elemento quer permanecer. Porque ele acha que é filho daquilo, ou acha que os avós dele foram os criadores daquilo e eles acham que o ambiente deles é aquele.

Então, eles querem permanecer ali, mas não sabem mais como permanecer ali, sentindo-se bem, então, passam a disputar um lugar de garçom e de roleteiro. E aquele que não consegue esse lugar, porque a escola não pode ter tantos garçons e tantos roleteiros, então eles passam a fazer comércio com a ala da escola. Eles vendem uma vaga na ala, vendem uma ala para outro. O cara tem uma ala que é famosa, por exemplo, a ala das marquesas, vamos dizer assim, essa ala é famosa, então, o líder da ala, vende um “título” oficial, quer dizer, sem registro de título oficial, nada disso. Vende por dez mil, acho que tá por aí o preço. Então, eles estão vendendo tudo, inclusive, a cultura deles. Estão vendendo a sua própria cultura. É o que vem ocorrendo nas escolas de samba. Então, um componente que não é iniciado em escola de samba, e nunca se dedicou ao samba, mas que muito marotamente já percebeu que samba-enredo já está sendo objeto de cobiça do comércio musical, o que ele faz? Ele também já chegou à escola de samba. Os chamados colunáveis, foram os primeiros a chegarem às escolas de samba. Porque há pessoas que não vêem seus nomes na coluna social, e para essas pessoas, a realização máxima é ter os seus nomes nas colunas sociais. Esse me parece ser o objetivo de muita gente que hoje está, por exemplo, na Portela, como é o caso do Hiram Araújo. São pessoas minhas amigas, o Hiram, Carlos Lemos, Pederneiras, são elementos que, sabe... O Hiram é médico, o outro é jornalista, o outro dentista, então eles querem se ver citados numa coluna social. E, como eles não têm o outro meio de chegar à coluna social eles se utilizam das escolas de samba para atingirem os objetivos deles. Então, o compositor que nunca se dedicou à escola de samba, percebendo que o samba-enredo hoje...

JBR – Bom, se dá destaque prum médico, dá muito mais para um compositor né?

EM – Exato. Dá porque o colunista social quando faz uma citação de uma determinada pessoa na coluna social, ele dá a entender ao leitor dele que está bem por dentro dos outros componentes das escolas de samba. Então, ele cita nomes de pessoas da comunidade, o lado desses que estão procurando promoção pessoal. Pra dizer – que está a par da vida da escola. Então, o compositor de classe média que nunca se dedicou à escola de samba, percebe que é um acordo meio de divulgação, não só pessoal como profissional. E, chega trazendo vícios dos meios de divulgação do comércio musical, a chamada caitituagem paga, que já está dentro das escolas de samba. Então, hoje, o compositor que não é de escola de samba mas que já conseguiu numa ala de compositores, paga, porque ele sabe que para cantar samba-enredo e preciso ter determinadas... Um tipo de interpretação à qual ele não está acostumado, exige sacrifício de quem canta, porque às vezes um puxador de samba fica mais de uma hora cantando um samba-enredo, então, ele paga a elementos da escola de samba para fazerem isso. É a chamada caitituagem paga, um vício do comércio musical.

JB – Depois, o próprio sambista tem de pagar aos colegas para poder cantar o seu samba. Quer dizer, o elemento natural da comunidade vê-se obrigado a entrar no esquema de caitituagem, para que, por exemplo, a bateria toque durante a apresentação de seu samba, do contrário vai cantar sozinho. É o começo da desunião, certo?

EM – Perfeito. Então, está dividindo a escola. Esses vícios de caitituagem que estão sendo trazidos para as escolas de samba estão provocando a desunião dentro da escola de samba. Tá dividindo a escola. Então, se não pagar a bateria e um determinado número de coristas para cantar o samba-enredo, o puxador de samba terá de cantar sozinho. Você está percebendo que quem tem maior poder aquisitivo é que está mandando hoje na escola de samba. Então, o sambista está em último plano. E o samba também. Fica o sambista marginalizado dentro de seu próprio ambiente. Ele hoje é garçom, varredor da sede, roleteiro, carpinteiro, só não é sambista. Tudo que ele pode fazer dentro da escola de samba para tirar proveito, ele vai fazer. Ganhar dinheiro, ele se acha no direito de tirar proveito também daquilo que ele criou. Mas, acontece que esse proveito que ele tira é muito menor do que o tirado por aqueles que se promovem através de colunas sociais, sendo citados como ilustres médicos, ilustres jornalistas, então, são pessoas que procuram chamar a atenção da sociedade de um modo geral. E, não há dúvida que isso tem reflexo na profissão deles, só traz benefícios, profissionalmente falando.

Agora, o sambista que era um excelente passista e que passou a varrer, esse não vai se promover como um grande varredor, porque isso é subemprego e subemprego é o que mais existe hoje em dia, aqui. Ser promovido como um integrante de uma classe de subemprego, isso não leva a nada. Porque até a invasão dessa turma de classe média no meio do samba, o sambista, o cenógrafo, que hoje é chamado de carnavalesco, ele dava vazão às suas tendências artísticas. Mas hoje, o elemento natural da escola de samba não faz mais o carnaval, porque o carnaval hoje é feito por um grupo de acadêmicos liderados por um professor deles, geralmente é assim, ele não faz mais samba-enredo, porque esse negócio eclodiu agora com a Portela, a tomada do samba-enredo foi oficializada agora com a Portela, então, ele não é mais destaque, porque o destaque nunca teve sentido de ostentação, que aos poucos esse sentido foi crescendo dentro da escola, e hoje o destaque...

4 comentários:

Anônimo disse...

Entrevista muito boa.

Mas na minha opinião, para se falar em escola de samba atualmente suporta um pouco mais de estudo.

abraço a todos.

Anônimo disse...

alicate falou tudo...

o lona... pede pro piruca o livro do isnard e do candeia "a árvore que perdeu a raiz".

vai ver que o alicate falou tudo

16 disse...

Aí o cara vê a imperatriz leopoldinense com sua organização focada na matriarca rosa magalhães: carnaval frio e centralizado. (embora a bateria seja muito foda)

aqui em porto alegre, tem uma escola cujo tema encomendado são os correios. Lógico que os correios tão patrocinando com uma bela grana... e pode ter certeza: o enredo vai tirar 10!

(a escola é a império da zona norte, campeã ano passado, e que tem que perder a autonomia numa coisa como enredo, pra poder competir no carnaval!!)

salve!!

Anônimo disse...

alicate não, quem falou foi o elton

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