Francisco Santana foi um dos grandes compositores que a Portela apresentou à música brasileira. Extremamente lírico, com melodias caprichosas, cunhou grandes páginas do livro do samba. Foi integrante da Velha Guarda desde sua fundação até os últimos dias de sua vida. Seria centenário neste ano de 2011 se não tivesse nos deixado, em 1988. Partiu para o Reino da Glória, mas deixou seu nome nos anais da história.
Podemos considerar Chico Santana um herói nacional. Mais do que generais, mártires e outros vultos históricos que são citados nos livros escolares, sambistas como ele foram responsáveis por verdadeiras transformações na cultura e na sociedade brasileira, atuando ativamente na lapidação de um diamante em estado bruto que era a então nascente música popular urbana. Suas melodias e versos ultrapassaram as fronteiras dos terreiros e avenidas, foram além da Escola de Samba e do Carnaval. Chegaram aos nossos dias.
Hoje temos as Escolas de Samba e o Carnaval desvirtuados pela lógica do capitalismo e pela transformação provocada pelos "adventícios" em seus seios. Vemos as Velhas Guardas envelhecendo sem que possam passar o bastão para os jovens da Escola, pouco comprometidos com a preservação desta rica cultura.
Mas a Portela e, mais além, o samba de terreiro, não morre. Não morre e nunca morrerá. O espírito verdadeiro, a chama da Portela e de todas as Escolas de SAMBA, mora dentro do coração de quem cultua nossa história e atua ativamente na preservação deste patrimônio. A Portela, verdadeiramente, não é aquilo que se vê atualmente no Carnaval carioca, e sim o "coquetel de sambistas", o "comitê de artistas" que lutam e vivem para elevá-la.
Brasil afora, existe hoje um movimento de valorização e preservação e, por que não dizer, culto ao samba de terreiro que se faziam nas Escolas de Samba de outrora. Principalmente em São Paulo, mas também em outros Estados brasileiros, existem fortes núcleos de pesquisa e estudo de sambas antigos da Portela, da Mangueira, do Salgueiro, do Império Serrano e do Estácio de Sá. Sambistas que bebem da fonte dos antigos, resgatando sambas que muitas vezes acabariam esquecidos dentro de um baú velho. Tocam o samba com todos os instrumentos desligados, com um grande coro permeando a bela orquestra de ritmo e harmonia.
E assim, com as Escolas de Samba desvirtuadas, mas com um forte núcleo nacional de sambistas atuando ativamente pela memória destas, as homenagens aos sambistas só poderiam partir dos sambistas de fato. Pois bem, neste centenário do Chico Santana, a homenagem não partiu da Portela, e sim dos sambistas de rodas de samba de São Paulo, Mauá, Uberlândia e Porto Alegre. Unidos, pelo samba e nada mais. Não há interesse comercial, político, sindical e nem religioso. O partido é o partido alto, a religião é o samba e o sindicato é dos sambistas brasileiros. Unidos para exaltar um grande baluarte da Portela.
A preparação começou ainda no ano passado. Ficou decidida a participação das seguintes rodas de samba: Roda de Samba de Uberlândia, Projeto Samba de Terreiro de Mauá, Projeto Comunitário de Resgate à Velha Guarda Terra Brasileira (São Paulo), Glória ao Samba (São Paulo), Núcleo de Samba Jequitibá (São Paulo) e Projeto Resgate (Porto Alegre). Ainda está prevista uma roda de encerramento no Rio de Janeiro, no fim do ano.
A organização é conjunta, discutida entre todos os coletivos. E o trabalho de pesquisa, idem. Juntamente à obra gravada do mestre (pequena, mas muito significativa), alguns sambas inéditos foram coletados.
E neste último final de semana tivemos a primeira roda, em Uberlândia. A recepção, foi digna das respeitosas visitas que aconteciam entre as Escolas de Samba do Rio de Janeiro, na antiga. Uma aula de civilidade e respeito. Não à toa, os antigos se tratavam como "mano", devido à grande fraternidade e respeito que havia entre eles. Hoje, os sambistas que seguem a linha da Velha Guarda mantêm esta tradição. Estavam lá, vários "manos" do samba, estilo que cunhou essa "irmandade" bem antes do rap.
Presente também nesta primeira celebração, Dona Neide, filha de Francisco Santana. Ela, que foi as lágrimas várias vezes, assim como muitos presentes, inclusive este "mano" que lhe escreve. Ela que, no dia seguinte, ainda embriagada de emoção, disse: "Depois de ontem, eu sou a pessoa mais feilz do mundo".
Presentes os sambistas, era hora de organizar a roda. Careca, exímio ritmista da Paulicéia, arregimentava os integrantes da gigantesca roda. "Os tamborins juntos, cavaco em bandolim pra cá, o outro cavaco pra lá, um violão aqui, etc..". Entre muitos instrumentos, um pandeiro à la Alberto Lonato, do Mano Galego, minerim bão, e um tamborim grave, de couro de cabrito, à lá batucada do Estácio, do Mano Janderson, da Baixada Santista, berço do maior time de futebol do Brasil.
Tudo pronto para o início. Antes de começar a homenagem, Fernando Paiva, representante da Roda de Samba de Uberlândia, um grande sambista brasileiro, estudioso e curioso (o que é uma excelente qualidade à astutos repórteres e pesquisadores), fez um breve discurso e concluiu com as belas palavras: "Nossa intenção aqui não é nenhuma outra a não ser homenagear o Chico Santana, não queremos mudar a história da música, não queremos revolucionar nada, nós só queremos mostrar o que a Velha Guarda tem".
E tome samba. "Si bemol"
Em primeiro lugar eu quero a graça de Deus
Em segundo lugar
Quero a saúde e que Deus me ajude
Em terceiro eu quero o dinheiro
Em quarto lugar, quero a mulher
E o resto seja o que Deus quiser
Em preces eu solicito
As graças do infinito
Pois desejo sim
Tudo de bom pra mim
Pois viver é sonhar
E sorrir e cantar
Sem blasfemar um sentimento qualquer
Pois o mundo é tão bom
Com saúde, dinheiro e mulher
O samba, parceira de Chico Santana com Armando Santos, é inédito, assim como outros tantos cantados na Toca do Patrimônio, em Uberlândia.
Pude sentir algumas lágrimas sobre meu rosto. E antes que pudesse me dar conta, escutava os versos ecoando na bela roda de samba:
O pranto que é chorado interiormente
Deixa no coração uma dor pungente
Meus olhos sentem vontade de chorar
Nenhuma lágrima para derramar
Sorrir, já não posso mais
Chorar, já não sou capaz
Porque secou a fonte do meu pranto
Meu Deus porque eu sofro tanto
Ah se meu pranto revivesse
E em meus olhos corresse
Gotas d'água a derramar
Com os olhos razos d'água
Escondia minha mágoa pra desabafar
Olhava para os lados e me sentia na Portela antiga que não vivi. Cada sorriso, cada olhar marejado, cada gesto de alegria dos sambistas faziam-me mais feliz. A Toca do Patrimônio ("um espaço para o samba", como dizia o texto na entrada do local) era a própria Portelinha. E entre nós ali, estava presente o espírito de civilidade que Paulo da Portela nos legou.
Cada rufar de pandeiro, cada acorde vibrando no ar. Tudo era gravado na minha retina. Cada vez que entrava o surdo, batia junto, mais forte, meu coração. Chico Santana era compositor de mão cheia, um dos grandes símbolos da Portela. Era o Chico Traidor, "foi traído e não traiu jamais". Pois logo foi entoado o samba:
Quem vê cara, não vê coração
Um sorriso também pode ser uma traição
Cristo também foi traído
Por Judas fingindo ser amigo
Com tanta ternura um beijo na testa lhe deu
E por trinta dinheiros lhe vendeu
Com um sorriso Cristo recebeu o beijo de ironia
Dando a impressão que nada sabia
Judas estremeceu ao ouvir sua voz:
Existe um traidor entre nós
Era brasa em cima de brasa. "Noite, que tudo esconde, devolva meu primeiro amor". O hino da Portela. O hino da Velha Guarda.
E caía a noite, e a cachacinha mineira descia bem. A cerveja gelada refrescava o calor mineiro. E o feijão dava "sustança" para o restante da roda.
Tudo era perfeito, mágico. "Corri pra ver, pra ver quem era, chegando lá, era a Portela".
"Portela é um batalhão de sambistas". "Portela é um coquetel de sambistas".
"Chegou a hora de caminhar, eu vou.Vou pra Portela, que o samba já me chamou".
Era a Portela ali. Eram portelenses, aqueles sambistas. Sim, a Águia Altaneira estava ali. Fechei os olhos, peguei o belo reco-reco produzido pelo Luís de Sumaré (que reco, hein, malandro!) e toquei. E cantava. E sentia o samba. As vozes fortes, não eram de Ventura ou João da Gente, mas sim de novos nomes como Lo Ré, Tuco, Marcelo Baseado ou Mano Paiva, para citar apenas quatro grandes "gogós" da nova geração.
Poucas vezes em minha vida me senti tão bem.
A roda terminou e uma incrível energia permanecia pairando no ar. Abraços e lágrimas entre os sambistas deixavam uma certeza no ar. Algo histórico havia acabado de acontecer ali. Salve todos os envolvidos neste projeto!
E foi só o primeiro samba. Dia 12 de março, é a vez da roda de samba do Glória ao Samba. Francisco Santana, lá de cima, feliz, mal pode esperar.
9 comentários:
Só queremos mostrar o que a velha guarda tem ! Salve Chico Traidor , foi Traido e nao triu jamais !
grande relato, cumpadre!
abraço, Alfredão.
Mano Piruca! Como e maravilhoso reviver aqueles momentos lendo seu texto postado. Tenho certeza que todos se emocionaram de novo com o presente que destes a nossa memória. Um abraço querido. Galego
Ahhhh malandragem, eu tava la tb, sentado nessa roda, e me emocionando como nunca. Salve Chico Santana.
Marcelo da Pesada
Grande, Piruca!
Show de bola!
Grande, Uberlândia!
Grande, Fernando!
GRANDE, CHICO!
Esse é o verdadeiro Chico!!!
A rapaziada está de parabéns.
Pesado estava o samba.
SALVE a PORTELA!!
SALVE CHICO SANTANA!!
Cara, agora eu penso assim: O BRASIL É RICO e sabe disso.
O samba fez muito antigamente pelo Brasil com lindas melodias e com letras que arrepiam.
Nos dias de hoje tem esta rapaziada, que não deixa por nada nesse mundo que o Brasil deixe de ser Brasileiro.
Deus obrigado por ter me feito conheçer gente assim, se hoje findar meus dias eu parto muito feliz.
Um grande Abraço aos "manos" que passarem por aqui.
Antigamente era Fabinho..pô, saudades.
André,
Esse samba que você citou como inédito, o "em primeiro lugar" foi gravado pelo Toquinho em 2003
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