17 de outubro de 2006

Henricão - Recomeço (1980)

NA VITROLA
Não vou começar a escrever sobre este disco sem antes contar como esta obra-prima foi parar em minhas mãos.

Eu já havia escutado alguns sambas ótimos dele nas rodas de samba e aí descolei o CD dele do ENSAIO da Cultura. No encarte, li a respeito de um disco solo que ele havia lançado. Na hora, lembrei que este disco havia passado pelas minhas mãos num sebo. No mesmo dia, fui ao tal sebo. Cheguei na hora de fechar a casa e tive procurar correndo a preciosidade. Achei. 8 contos.

Chegando em casa, escutei a relíquia. Aí minha felicidade foi completa. Arranjos primorosos, privilegiando a harmonia dos violões e do cavaquinho. O ritmo bem cadenciado com o surdo entrando sempre na hora certa.

As músicas são obras-primas. Está chegando a hora (Ai, ai, ai, ai, está chegando a hora/ o dia já vem raiando meu bem...) é um hino dos estádios de futebol de hoje. Era uma música mexicana (Cielito Lindo) que Henricão, sabiamente, adaptou em forma de samba. Carmelito é um antigo tango (Camiñito) que também virou samba. Estas duas faixas contam com a participação de Carmem Costa, que dividia os microfones com o sambista paulista nas rádios paulistanas nos anos 40.

O samba Não faça hora, feito em parceria Caco Velho, eu conheci nas rodas. É um samba paulistaníssimo, que faz referência ao famoso relógio da praça da Sé.

Não faça hora (Caco Velho - Henricão)


Não faça hora comigo
'Que eu não sou relógio da Praça da Sé
Não faça hora comigo
'Que eu não sou relógio da Praça da Sé

Sou doce, não sou sou de açúcar
Sou preto, não sou café (não é?)

Não faça hora comigo
'Que eu não sou relógio da Praça da Sé
Não faça hora comigo
'Que eu não sou relógio da Praça da Sé (não é?)

Pois é, tá tudo azul (não está?)
Está legal (não está?)
Eu não vim fazer hora
Senão pode ser, eu vou-me embora



As parcerias mais constantes (inclusive as duas adaptações já citadas) são com Rubens Campos. Mas também assinam parceria com Henricão os sambistas Raul Marques e Bucy Moreira, além de José Alcides, Dêdê, Vitor Gonçalves e Caco Velho.

Os sambas são sempre muito cadenciados e diferentes dos sambas cariocas. Suas composições têm uma característica bem própria, inclusive as parcerias com os malandros Bucy Moreira e Raul Marques.

Há no disco, ainda, uma marcha-rancho, Andorinha.

Andorinha (Henricão - Rubens Campos)

Andorinha, você fez o verão sozinha
Eu também estou igual ao beija-flor
A procura de um amor

Quando em revoada o seu bando separou
A fiel amiga nem sequer te procurou
Eu também ando fazendo verão
Até encontrar um coração



E, também, uma batucada (Saravá Umbanda). Porém, o mais surpreendente mesmo, para mim, foi a letra que Henricão colocou, no maravilhoso choro Sons de Carrilhões, de João Pernambuco. Vale a pena transcrever:

Sons dos Carrilhões (João Pernambuco/ Henricão)
Meu grande amor, eu vou partir
Sei que saudade irá sentir
Pois eu fiz tudo para lhe agradar
Me faz sofrer, me faz penar
Quando distante, eu estiver
Pode pensar o que quiser
Pode dizer que eu fui louco em deixar
Este meu divino lar

Mas pra que viver com quem não quer viver
Eu sempre fui sacrificado em pró do seu pudor
Pelo amor do nosso amor
Mas você sempre fingiu não compreender
O que passou na minha vida
Foi um sonho meu desiludido
O meu amor ardeu



É isso aí. Paulista também faz samba de primeira. Segue o texto da contra-capa do disco de 1980.


"Na recente visita do papa ao Brasil, milhões de pessoas – em diversas ocasiões, em diferentes pontas do País – se despediram de João Paulo II cantando “Está chegando a hora”. Eles estavam apenas repetindo um hábito que já se tornou tradicional, entre nós, nas grandes comemorações futebolísticas e nos finais de bons bailes. E mal sabiam que o responsável por esse sucesso carnavalesco, Henrique Felipe da Costa, estava naquele mesmo início de julho reiniciando sua carreira artística gravando este disco. Desde 1956 Henricão – compositor também de outros sucessos como “Casinha da Marambaia” e “Carmelito” – não gravava.

O ostracismo estava deixando o veterano sambista “cheio de tristezas”. Afinal, no carnaval deste ano, a Vai-Vai, escola de samba mais popular de São Paulo, que ele ajudara a fundar, comemorava 50 anos de existência oficial, mas Henricão não tinha sido convidado sequer para assistir um ensaio na quadra do Bixiga. Outro aborrecimento era a falta de notícia da cantora com quem formara famosa dupla nos anos 30 e 40. Por onde andaria aquela Carmelita Madriaga, a moça que tirou ele de um programa de calouros, transformou em sua parceira de palco, batizou com o nome artístico “Carmem Costa” e deu de presente para a música popular brasileira?

Fui encontrá-lo assim, com essas inquietações, no início de 1980. A minha missão era escrever uma reportagem sobre a Vai-Vai para o Jornal da Tarde. Por indicação do fotógrafo e pesquisador musical Dirceu Leme, localizei Henricão trabalhando numa casa de carros usados da “boca” da rua Helvetia, no decadente Campos Elíseos. E morando num apartamentinho entre armazéns de transportadores no Pari.

Henricão, com seus 150 quilos, é um sujeito forte para quem está com 72 anos. Uma idade que não o impedia, naquela época, de fazer muitos projetos. Um deles: gravar de novo um disco. Só que este desejo tinha uma barreira: o desdém com que os produtores de algumas gravadoras o recebiam.O que era uma injustiça não só para ele, mas também para a nossa música, que ficaria sem um documento digno da produção que ele realizou. Senti que o samba precisava de ajuda.

A mágoa com a Vai-Vai era tão forte que ele nem quis aceitar o convite para assistirmos juntos o carnaval na Avenida Tiradentes. Por sorte, em fevereiro, a Carmem Costa estava fazendo uma temporada na cidade, no “Ópera Cabaret”, do Bexiga. Levei o Henricão até lá. Foi um reencontro memorável. Carmem chamou o antigo companheiro ao palco e, de improviso, eles cantaram e dançaram alguns velhos sucessos da dupla. O público delirou, gostou de ver aquele negrão de cabelos e cavanhaque brancos, sambando com muita facilidade e meio encantado... como seu sorriso todo branco deixava perceber. Até parecia que os bons tempos tinham voltado: o gerente da casa contratou Henricão para terminar a temporada com Carmem.

Dias depois, ele estaria falando, por indicação minha, com Aluízio Falcão, da rádio e estúdio Eldorado. O Henricão cativou Aluízio logo de cara. Primeiro ele gravou um programa para a rádio, em que cantou e fez um depoimento. Recordou seu passado, como o dia em que saiu de Itapira, trazido para São Paulo por um comerciante corintiano que se entusiasmou ao vê-lo joga no gol do time local. O homem queria que aquele rapaz negro jogasse no Corinthians, mas em São Paulo o moço interiorano gostou mais das gafieiras. E logo estaria cantando em rádios. Um dia se aventurou, foi para o Rio. Lá a sua estrela artística começou a brilhar, especialmente a partir do momento em que Ataulfo Alves lhe apresentou a futura Carmem Costa. Excursionou pelo País, escreveu mais de cem músicas, conheceu o sucesso. Trabalhou, também, como ator, em teatro, cinema e televisão. Ganhou prêmios... No programa da rádio, ele contou tudo em detalhes.

Passaram-se algumas semanas até que Henricão fosse chamado de volta à Eldorado, desta vez para tomar conhecimento de que seu disco, o tão esperado disco, seria feito. Ao receber a notícia, ele chorou convulsivamente. “Coloquei todas as tristezas para fora”, diria depois. E voltaria a chorar durante a gravação, fazendo o seu gorro de lenço. No estúdio, encontrou fãs e fez amigos. Um deles, o Edson José Alves, filho de Juci, antigo integrante do “Rago e seu regional”, que acompanhou Henricão no auge de sua carreira. O sambista se comoveu com a dedicação de Edson nos arranjos e, especialmente, quando o acompanhou, com um violão de cordas de aço em “O Som dos Carrilhões”. A música é um imortal choro de João Pernambuco, no qual Henricão colocou letra, agora pela primeira vez gravada.

Todas as músicas deste disco foram escolhidas pelo próprio compositor e cantor. Tudo foi feito de maneira natural, que é a própria maneira se ser de Henricão. Um tipo de gente que hoje é rara. Sincero, sensível, simples. Como é também a sua música, pois ela não passa do retrato do seu dia-a-dia. A história dos amores perdidos, dos fatos observados na rua. A crioula que ele esperava debaixo do relógio da praça da Sé deu mancada? Não tem importância, isto lhe inspirou um samba. Aquela outra o abandonou, magoando-o muito? De seu coração surgiu “Sou Eu”, que Paulo Vanzolini considera um dos melhores sambas paulistas. Certa vez, durante uma festa pública em Pernambuco, viu que a platéia gostava muito de cantar “Cielito Lindo”, uma música mexicana. Aproveitou, escreveu nova letra para ela, transformando-a num samba de respeito, a tempo de apresentá-lo durante a festa. Assim nasceu a sempre cantada “Está chegando a hora”. Outra vez, num bar, teve a idéia de compor “Casinha da Marambaia” ao escutar a conversa de dois aspirantes a fuzileiros navais...

Seu companheiro na maioria das composições é outro paulista, Rubens Campos, que um dia também foi pro Rio. Certa ocasião, eles estavam na Praça Tiradentes, sentados, e um bando de andorinhas sobrevoava o local com insistência. Indo e vindo. Mas uma das aves, notou Henricão, não se misturava com as outras, voava sempre mais atrás um pouquinho. Ele disse ao amigo: isso dá música. O Rubens brincou: “O, Henricão, você de tudo quer fazer música!”. Ele não se incomodou. No dia seguinte iria ao escritório de despachante do parceiro apresentar-lhe os primeiros versos da marcha-rancho “Andorinha”. Até sua sobrinha Dedé ajudou na composição.

Para que essa música fosse incluída no disco, foi preciso arranjar um bombardino, instrumento hoje em desuso. Era a vontade do sambista e assim foi feito. Da mesma forma como se organizou um “regional”, coisa que não se usa mais em gravações, para acompanhá-lo. Esse acompanhamento foi intencionalmente despojado, de modo que a voz de Henricão fosse registrada com clareza. Respeitou-se também o seu modo de falar. Assim como o seu desejo e gravar com Carmem – e ela está nas faixas “Carmelito” e “Está chegando a hora”. Henricão está satisfeito, acha que capricharam mesmo, diz que agora já pode morrer em paz... se bem que, pensando melhor logo em seguida ele diz que isto é apenas o recomeço. E sorri seu branco sorrisão, amigo, infantil, contagiante. Humano."

Júlio Moreno - Outubro de 1980
LADO A
1) SÓ VENDO QUE BELEZA - (Marambaia)
(Henricão - Rubens Campos) - 2'12"

2) ANDORINHA
(Henricão - Rubens Campos) - 2'48"

3) SONS DOS CARRILHÕES
(Henricão - João Pernambuco) - 2'28"

4) SOU EU
(Henricão - José Alcides) - 3'18"

5) CARMELITO *
(Adaptação de Henricão e Rubem Campos sobre a melodia "Camiñito", de Penaloza e Juan De Dios Filesberto) - 3'47"

6) SARAVÁ UMBANDA
(Henricão - Dedê - Vitor Gonçalves) - 2'54"

LADO B
1) ESTÁ CHEGANDO A HORA *
(adpatação de Henricão e Rubem Campos sobre a melodia "Cielito Lindo", de Fernandez) - 3'48"

2) DEU CUPIM
(Henricão - José Alcides) - 2'13"

3) NÃO FAÇA HORA
(Henricão - Caco Velho) - 2'20"

4) JÁ É MADRUGADA
(Henricão - Rubens Campos) - 2'37"

5) MEU CRIME
(Henricão - Bucy Moreira - Raul Marques) - 2'47"

6) MEU GRANDE DESEJO
(Henricão - Raul Marques) - 2'37"

FICHA TÉCNICA
PRODUTOR FONOGRÁFICO: Estúdio Eldorado Ltda.
COORDENAÇÃO ARTÍSTICA: Aluizio Falcão
PRODUÇÃO E DIREÇÃO MUSICAL: Edson Alves
TÉCNICO DE GRAVAÇÃO E MIXAGEM: Flávio A. Barreira
FOTO CAPA: Oswaldo Luiz Palermo
DIREÇÃO DE ARTE: Ariel Severiano
ASSISTENTE DE ARTE: Flávio Machado

* Participação especial da intérprete CARMEM COSTA, gentilmente cedida pela Gravadora CONTINENTAL

(texto do LP original, lançado em 1980)


Avaliação: ***** (excelente)

4 comentários:

Anônimo disse...

Show esse disco André. Tô baixando aqui. Valeu!

Anônimo disse...

ola andré!gostaria de saber onde encontrar informações sobre o compositor rubens campos,sou neta dele e infelizmente não o conheci mas quero fazer um arquivo para presentear meu pai - josé carlos- que também não possui nada sobre o pai.se consseguir algo,agradeceria muito.]
grata
ana lucia campos
analcb@icr.hcnet.usp.br

Anônimo disse...

Infelismente a faixa "NÃO FAÇA HORA" de parceria c/ Caco Velho está tocando só o começo da música e depois fica mudo.

Se puder resposta-la!!!

No mais PARABÉNS!!!!!

Ney Fogo

Unknown disse...

Parabéns pela postagem. Esse disco é muito bom, tenho o LP original, porém, não tenho em CD ou MP3. Como faço para baixá-lo?

Abraços!

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O Couro do Cabrito by André Carvalho is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Vedada a Criação de Obras Derivadas 3.0 Brasil License.
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