Reproduzo abaixo, um texto de Francisco Bosco sobre a Velha Guarda da Portela. E mais abaixo, segue o link de uma grande entrevista realizada pelo mesmo Francisco Bosco com o Diretor Cultural da Portela, Carlos Monte.
SEGUNDO CADERNO O GLOBO Quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
FRANCISCO BOSCO
Velha Guarda da Portela
No belo e comovente documentário de Carolina Jabor e Lula Buarque de Hollanda sobre a Velha Guarda da Portela, há uma cena reveladora. Nela, Argemiro conta que, certa vez, levado por Paulinho da Viola até Vinicius de Moraes e Chico Buarque, esses o provocam: “Quer dizer que você é sambista? Então faz um samba sobre essa garrafa.” Argemiro, sem pestanejar, responde: “Eu não, não estou sentindo nada por ela.” Por meio dessa anedota pode-se começar a compreender por que o filme se chama tão apropriadamente, “O mistério do samba”. É que o mistério dos sambas da Velha Guarda da Portela, sua singularidade, está em que eles são, lá onde mais se diferem, sambas do
mistério. Vejamos.
Pode-se afirmar que a tradição principal do samba é aquela que Muniz Sodré chamou de transitiva, isto é, concreta, ao rés-da-realidade, diretamente vinculada às situações da vida cotidiana. À parte a controvérsia musical (maxixe ou samba), esse traço está inscrito desde a origem mítica do samba: “Pelo telefone”, em sua versão consagrada, começa, justamente, com versos que parecem emergir da realidade em tempo real: “O chefe da polícia/Pelo telefone/ Mandou avisar/ Que na Carioca/ Há uma roleta/ Para se jogar”.
Essa vertente, referencial, é a que prevalece desde os primórdios até a consolidação do samba como gênero, já nos anos 30, com toda a geração do Estácio, mais Noel Rosa, Wilson Baptista, Geraldo Pereira, Herivelto Martins etc. A esse traço fundamental da transitividade juntar-se-ia logo outro, igualmente decisivo: a ética da malandragem. Esse, deve-se aos bambas do Estácio, que formam o período romântico da história do samba: boêmios, de vida dissoluta, morrendo jovens, de doença, loucura ou crime. Com efeito, enquanto os primeiros sambistas, da Cidade Nova (Pixinguinha, Donga, João da Baiana), foram em geral longevos, e levavam vida, digamos, mais civilizada, os sambistas do Estácio eram quase todos malandros, em sentido rigoroso: ganhavam a vida no jogo, na cafetinagem, não eram letrados, nem musical nem verbalmente. Quase todos tinham mulheres no Mangue, e a maioria morreu cedo: Nilton Bastos, Baiaco, Rubens Barcelos, Edgar, Brancura. Ismael Silva
escapou, mas não sem ter passado alguns anos na cadeia.
Tudo esse universo é estranho aos sambas da Portela. Não é que ele não esteja presente, de modo algum, no repertório dos compositores de Oswaldo Cruz. De fato, já nos sambas de seu fundador, Paulo da Portela, e em outros de sambistas da primeira geração, como Alvarenga, encontramos letradas dedicadas à dura realidade do trabalho (“Cocorocó”) e do dinheiro (“Dinheiro não há”). Esses temas, caros à tradição transitiva da malandragem, atravessam a história da Portela. Basta evocar um de seus maiores clássicos, “Vivo isolado do mundo”, do mítico Alcides Malandro Histórico, um partido-alto sobre o tema do malandro regenerado. Mas não é neles que se revela o mistério dos sambas da Portela. Muitos desses sambas cantam a natureza. “Linda borboleta” e “Cidade Mulher”, de Paulo da Portela; “Madrugada”, de Aniceto; “Lua cor de prata”, de Manacéa, entre outros.
Aqui começamos a nos aproximar do x do problema. Carlos Monte e João Baptista Vargens, em seu livro “A Velha Guarda da Portela”, oferecem uma hipótese explicativa para esse traço. Oswaldo Cruz, em seus primórdios e durante boa parte de seu desenvolvimento, era uma comunidade de atmosfera rural: “Morava-se na roça, mantinham-se os hábitos da vida simples do interior.” Era um mundo em que “passarinhos trinavam nos galhos. Galos cantavam nos terreiros”. Daí a ligação dos sambas com a natureza. Essa hipótese me parece
totalmente plausível. Peço licença, entretanto, para ir adiante. Se ouvirmos atentamente sambas como “O mundo é assim”, de Alvaiade, ou “Nascer e florescer”, de Manacéa, compreenderemos que o que se canta ali não é propriamente a natureza, o sentido de uma visão estática que se representa, mas a natureza enquanto origem, o que não cessa de emergir, o ser: “O dia se renova todo dia/ Eu envelheço cada dia e cada mês / O mundo passa por mim/ Todos os dias/ Enquanto eu passo pelo mundo uma só vez”. O que se revela aqui, por menos recomendável que seja esse tipo de comparação, parece se inscrever no que os antigos gregos entendiam como physis, a origem, e que é, na definição de Alberto Pucheu, “não apenas o momento volátil, que logo se apaga, em que algo se inicia, mas, sobretudo, aquilo que permanece enquanto motor do que nasce em todo o seu processo duradouro”. A natureza, assim, não é objetificada, mas percebida em seu devir permanente.
O poeta se coloca na posição do espanto. Esse gesto, filosófico, de interrogar a vida, buscando penetrar-lhe os mistérios, é verificável em muitos sambas. Em “Solidão”, de Argemiro, por exemplo, ou “Madrugada”, de Zé Keti (que não foi da Velha Guarda mas manteve laços com ela), em que o tema clássico da boêmia recebe um tratamento reflexivo. É essa mesma ligação com o mistério, com a origem, que percebemos nos sambas dedicados à inspiração, como o belíssimo “Inspiração”, de Candeia, ou “Minha inspiração”, de Argemiro, que remonta ao episódio envolvendo Chico e Vinicius.
Não há espaço aqui para tratar dos inúmeros sambas antológicos sobre o amor. Só pude dizer o essencial (cheio de lacunas). Quero dedicar esse texto a Carlos Monte. E dizer ainda que Monarco é um dos seres que mais amo nesse mundo (espero voltar a falar dele neste espaço).
Nenhum comentário:
Postar um comentário