Nos idos de 1952, quando Jorge Goulart gravou o clássico samba Mundo de Zinco, parceria com Nássara, Wilson Baptista legou a todos seu anseio. O desejo era que, tal qual aconteceu com Noel Rosa, ilustre companheiro de polêmica, seu nome entrasse para o livro de ouro do samba. "Mas deixo o nome na história, o samba foi minha glória / E sei que muita cabrocha vai chorar por mim".
Dezesseis anos depois, de fato, muita cabrocha chorou por ele. Mas o seu nome, naquele momento, não entraria de imediato para história. Corria o ano de 1968, época de revoltas, de manifestações populares, de mudanças sociais profundas e - triste lembrança - do famigerado Ato Institucional nº 5, que reduziu ainda mais as liberdades civis da população brasileira naqueles tempos sombrios de ditadura militar. Tamanha convulsão fez com que a morte de Wilson Baptista passasse batida. Morreu pobre e esquecido.
Mais de quatro décadas após seu desaparecimento, inúmeros clássicos de sua autoria seguem celebrados, como Emília (com Haroldo Lobo), Bonde de São Januário, Oh Seu Oscar (ambos com Ataulfo Alves) e Meu mundo é hoje (com José Batista), ainda que muitos ignorem que Wilson seja o autor de tais pérolas. Fato é que a genialidade do compositor é inversamente proporcional a seu reconhecimento para com as gerações que se sucederam após sua morte.
Poucos se dedicaram a estudar a vida e a obra de Wilson Baptista. Em 1985, a Funarte lançou um disco (com Joyce e Roberto Silva) e um livro (Wilson Batista e sua época, escrito por Breno Ferreira Gomes) em sua memória. Em 1996, Luís Fernando Vieira e Luís Pimentel publicaram Wilson Batista na corda bamba do samba, pela editora Relume Dumará. Quatro anos depois, Cristina Buarque gravou um Cd todo dedicado ao bamba, Ganha-se pouco, mas é divertido. Finalmente, nos últimos anos, o pesquisador Rodrigo Alzuguir dedicou ao mestre um espetáculo musical, um CD duplo (ambos batizados de O samba carioca de Wilson Baptista), um livro de partituras (Wilson Baptista - Cancioneiro Comentado, recém-lançado), além de se preparar para lançar, nos próximos meses, a mais completa biografia já realizada sobre o sambista, Wilson Baptista - O samba foi sua glória.
Com a exceção dos trabalhos desenvolvidos por Alzuguir, no entanto, o centenário de Wilson Baptista teve pouco destaque na mídia e quase nenhuma homenagem foi feita em seu nome - diferentemente do que ocorreu com Noel Rosa, Cartola, Adoniran Barbosa, Nelson Cavaquinho, Herivelto Martins e Assis Valente, nos últimos anos. Mas uma grandiosa celebração haveria de ser feita.
De Herivelto Martins a Wilson Baptista
Ano passado, sambistas de Belo Horizonte, da Roda de Samba Brasil 41, protagonizaram um dos espetáculos mais belos dedicados a um compositor brasileiro. Era o ano do centenário de Herivelto Martins e uma grande roda de samba foi formada, no acanhado bar situado na Avenida Brasil, nº 41 (daí o nome da "agremiação"). Dezenas de sambas de Herivelto, dos mais clássicos aos mais desconhecidos, foram cantados com fervor pelos jovens sambistas, tão dispostos a valorizar a cultura popular brasileira. Findada a homenagem, ficou no ar uma vontade de seguir exaltando estes nomes tão distintos de nossa música. Ali, no calor da emoção, decidiu-se: 2013 é ano de celebrar o centenário de Wilson Baptista.
A data escolhida para a celebração foi 13 de julho, um sábado. Neste dia, a capital do samba foi Belo Horizonte. Eu digo e não tenho medo de errar.
Belo Horizonte recebeu, nesta ocasião, sambistas de Uberlândia, Rio de Janeiro e São Paulo. O time estava entrosado, o Brasil 41 ensaiou o ano inteiro. Receber ritmistas, violonistas e cavaquinistas de outras paragens para sentar à roda naquele dia, sem ensaios prévios... Haveria de dar algo errado? Não, pois todos ali falavam a mesma língua. Se fosse um time, todos jogariam por música, praticando o mais legítimo futebol-arte. Bastaria o samba começar para todos saberem o que fazer. E foi assim que aconteceu.
Antes de tentar exprimir em palavras uma das rodas de samba mais emocionantes que já presenciei, cabe ressaltar a extrema dedicação destes mineiros que tomaram frente ao maravilhoso projeto de homenagear Wilson Baptista, os sambistas do Brasil 41: Daniel Capu, Vinícius Terror, Mateusão, Bernard, Arthurzinho, Ciro, Adriano, as pastoras e todos os outros integrantes desta agremiação, que tanto faz pelo samba. Aos que vieram de fora, Tuco, Alfredão, Julião Pinheiro, João Camarero, Léo Careca, Fábio Lomba, Thiago Belisário, Fernando Paiva, Galego, Carica, Fabrício, e tantos outros mais, também, um salve! Aos que não citei, mas que estiveram presentes (e ao Artur de Bem, que ajudou na pesquisa de repertório, mas não foi a BH), obrigado! E vamos ao que interessa, a inesquecível homenagem.
Pode perguntar se era assim
A harmonia dos violões e cavaquinhos falava alto. Então, entoaram-se os versos do samba Não era assim, parceria de Wilson com Haroldo Lobo, gravado inicialmente por Déo, em 1945, e regravado por Cristina Buarque, em 2000.
Não era assim que a bateria falava, não era assim
As cabrochas não sambavam assim
Você vai lá em São Carlos, Mangueira,
Salgueiro, Matriz, todo morro, enfim
Pode perguntar se era assim
Não havia bateria, era tudo diferente
As cabrochas não sambavam esse ritmo tão quente
Pergunte ao João da Baiana, que vai responder por mim
Se era, se o samba era assim...
Quando o samba voltou para a "cabeça", entrou a bateria. Falando alto, mostrando que era assim que ela falava, nos bons tempos de João da Baiana. Pode perguntar se era assim. A emoção do momento fez com que lágrimas brotassem, discretas, dos meus olhos. Há tempos não sentia tal sensação em uma roda de samba. Um momento sublime. E era apenas o início de uma tarde magistral.
Se o samba que abriu a homenagem foi regravado por Cristina Buarque, muitos outros que se sucederam no repertório não tiveram o mesmo destino, permanecendo escondidos em velhos acetatos e em acervos particulares, sobrevivendo a traças e gerações alienadas da obra do genial sambista. E a bateria avançava - fogo! -, celebrando a Miss de Mangueira, o botequim, o carnaval. As cabrochas sambavam até a sandália furar e toda a plateia ficou maluca depois de ouvir o samba do Brasil 41.
Wilson Baptista, que se preocupou tanto em deixar um legado e partiu sem ter seu nome devidamente exaltado, certamente estaria feliz em ver tamanha celebração. Heróis são aqueles que cantaram, que sambaram por nós. E que herói foi este grande bamba!
E o Brasil inteiro vai cantar depois o samba de Wilson Baptista
O repertório era repleto de sambas "lado B", mas para aqueles sambistas que entoavam, com louvor, melodias e versos de Wilson, estava tudo na ponta da língua. Aos que não conheciam as composições garimpadas, tal qual pepitas de ouro, pelos esmerados pesquisadores, um caderninho - com todas as letras, a ordem de apresentação dos sambas e um precioso texto, escrito por Sérgio Moraleida - servia de apoio.
Ao ouvir a roda de samba cantando com gosto os sambas desconhecidos de Wilson, a impressão era que tais composições eram clássicos absolutos da música popular brasileira, já que todos cantavam em alto e bom som, em um coro afinado. Foi assim que o povo cantou os contagiantes Quando dei adeus (com Ataulfo Alves), Sempre Mangueira (com Nássara e Jorge de Castro), A voz do sangue (com Valfrido Silva), entre tantos outros.
Outras composições, resgatadas por Cristina Buarque em Ganha-se pouco, mas é divertido, também tiveram espaço: Sambei 24 horas, Cabo Laurindo, Rosalina (todas com Haroldo Lobo), Comício em Mangueira (com Germano Augusto) e Lá vem o Ipanema (com Roberto Roberti e Arlindo Marques Júnior) foram cantadas pelos presentes. Da pesquisa feita por Rodrigo Alzuguir para o disco O samba carioca de Wilson Baptista, lançado em 2011, entraram Louca alegria e Transplante de coração (último samba composto pelo mestre).
O sincopado Mania da falecida (mais uma parceria com Ataulfo Alves) e sua primeira composição, Por favor vai embora (com Osvaldo Silva e Benedito Lacerda) - um samba híbrido, um tanto rural, um tanto urbano - também foram cantados, a despeito da diferença de andamento destas duas composições para as outras destacadas na homenagem.
Cronista musical que foi, Wilson Baptista explorou, como poucos, as diversas temáticas que compunham a vida social do Rio de Janeiro da primeira metade do século passado. E neste lindo tributo dedicado a ele, um variado leque de crônicas em forma de samba fez-se presente: a mulher que abandona o marido para cair no samba, os bairros e morros (Lapa, Salgueiro, Mangueira e Favela), os personagens emblemáticos (se faltou Emília e Seu Oscar, estiveram ali Guiomar, Elza, Rosalina e Etelvina), toda esta aquarela musical esteve presente no Galpão Cultural, no bairro belo-horizontino de São Gabriel.
A nossa homenagem é sincera...
Em 1945, Aracy de Almeida gravou o samba Parabéns para você, uma parceria de Wilson Baptista com o bamba Roberto Martins. A bela composição, por anos, foi cantada em aniversários de sambistas - até ser suplantada pela composição homônima, versão brasileira de uma canção estadunidense de letra e melodia um tanto aquém a rica tradição musical brasileira.
A cada primavera, os sambistas entoavam o belo samba:
Parabéns para você
Pelo seu aniversário
Que Deus o faça feliz
Bem feliz junto aos seus
São os meus ardentes voto
Com toda sinceridade
Parabéns para você
E muita felicidade
A minha homenagem
é sincera
Pois hoje você passa mais uma primavera
Aceite um forte abraço
Deste alguém que tanto lhe ama
Parabéns para você
Segue nesse telegrama
No aniversário de 100 anos de Wilson Baptista, não haveria composição mais emblemática para homenageá-lo. E foi este o derradeiro samba da celebração. Parabéns, mestre! Os sambistas agradecem e exaltam, nesta data histórica, sua genial obra.
Wilson Baptista segue vivo e grandioso. Afinal, como diz um trecho de seu último samba: "o sambista quando é grande demais, não deve desaparecer".
Avaliação: ***** (excelente)